09/06/2009

PAUL THEK (2)

De coração aberto A Paul Thek é preciso oferecermo-nos de corpo inteiro, sem reticências, olhos e coração bem abertos. Liberdade, sensualidade, irreverência, subversão, dissipação de fronteiras: entregamo-nos e é isto que nos envolve - um erotismo terrivelmente inteligente em que o mundo inteiro se funde numa procissão de êxtase dionisíaco. Pintura seguida de desenho seguido de escultura seguida de colagem seguida de instalação; referências à Antiguidade e ao romantismo com aproximações à BD e ao "cartoon"; o maior rigor académico com a mais calculada displicência formal, o natural mais intocado com o construído mais sofisticado, o carnal extremo com o asséptico mais "sleek": já todos vimos muito disto - ou pelo menos já todos vimos muito de qualquer coisa que tenta chegar aqui, a esta incrível intensidade - e talvez por isso a maior das revelações seja, a dada altura, lembrarmo-nos de que Thek não é um artista dos anos 00, foi um artista lá atrás na História, ombro a ombro com os minimalismos e a Pop. Não se trata de intemporalidade, trata-se da contemporaneidade de uma linguagem que se foi tornando mais viva e transparente a cada nova década; um idiolecto, a linguagem de uma só pessoa que, entretanto, aprendemos todos a falar. Paul McCarthy, Mike Kelley, Thomas Hirschhorn, Damien Hirst, Matthew Barney, Jonathan Meese - lembramo-nos de todos, em algum momento, mas, antes de mais, está Francis Bacon: é nele, na ferocidade da sua anti-metafísica carregada de entranhas e vísceras que começamos por pensar. Às duas séries de esculturas que desenvolveu a partir de 1964, para a sua primeira exposição na Stabler Gallery, Thek chamou "Meat Pieces" ("peças de carne") e "Body Casts" ("moldes do corpo"), ainda que posteriormente acabassem por se ver genericamente designadas como "Technological Reliquaries" ("relicários tecnológicos") - entramos no Reina Sofia e temos isto: simulacros de carne feitos de cera e expostos dentro de mostruários de vidro e ferro. Inicialmente, são peças pequenas e simples, mas que, ao longo do tempo, se foram transformando em estruturas cada vez mais sofisticadas, as maiores das quais com mais de dois metros de altura, feitas em pléxiglas amarelo-limão, como cápsulas vindas do (ou a enviar para o) espaço. "A ideia da carne em pléxiglas divertia-me, porque pensava que se ria da cena [artística nova-iorquina] onde o jogo parecia ser 'até que ponto podes ser frio e refinado?'. Ninguém nunca mencionava nada que parecesse real. O planeta estava a desmoronar-se (...) e eu ia a uma galeria e havia um monte de gente elegante a olhar para coisas que não diziam nada sobre nada a ninguém", explicaria Thek mais tarde. A Warhol, sobre as suas "Brillo Boxes", diria: "Tudo o que lhes falta é um bocado de carne dentro" - a Factory acabaria por lhe mandar uma caixa que ele abriu e a que chamou "Meat Piece with Warhol Brillo Box". Foi pouco antes do nascimento dos "Body Casts", variação sobre as "Meat Pieces" tornadas arqueologia de um tempo por vir. O "cyberpunk" dos anos 1980 haveria de ser assim, com a transpiração seca de um limbo entre o passado e o futuro, o "high" e o "low tech", o humano e o tecnológico, o açucarado e o repugnante, o onirismo mais "naïf" e a vulgaridade mais baixa, quase obscena. Um rosto, supostamente o do artista, língua de fora com "piercing"; um braço solto, armadura feita de asas de borboleta; um pé, sandálias de cabedal, como um anjo ou um guerreiro romano: muito se especulou sobre a base católica dos "Technological Reliquaires". Thek, que passara dois anos em Itália, entre 1962 e 1964, e que durante um Verão siciliano visitara as catacumbas de Palermo, falaria do impacto da visão de mais de oito mil corpos expostos em sarcófagos de vidro, a decorar o espaço como flores: "[As minhas esculturas] são agnósticas. Não levam a lugar nenhum, excepto talvez a uma espécie de liberdade. A dissonância das duas superfícies, o vidro e a cera, agrada-me... Espero que tenham a inocência dessas criptas barrocas da Sicília." Em Palermo, terá aberto um dos sarcófagos e pegado naquilo que lhe pereceu um pedaço de papel mas que era, na verdade, um pedaço de carne seca: "Senti-me estranhamente aliviado e livre. Aceitamos a nossa qualidade de objecto intelectualmente, mas a aceitação emocional [desse facto] pode ser uma alegria." A origem da tragédia Thek poderá ter nascido numa família católica, mas dizia-se um cristão renegado, descrevia-se como Goethe - "cientificamente panteísta, poeticamente politeísta, moralmente monoteísta" - e norteava-se pelo modelo apolíneo-dionisíaco proposto por Nietzsche em "A Origem da Tragédia". Em algumas aproximações biográficas, diz-se que, a dada altura, Sontag, que estudara Literatura e Filosofia, lhe passara essa obra juntamente com algumas outras e que Thek as devorara numa só noite. Mais tarde, já perto do fim, faria várias telas alusivas às trocas intelectuais entre ambos. Uma delas, de fundo amarelo muito vivo e datada de 1987, tem escrito a rosa em cursivo infantil "Susan Lecturing on Nietzsche". Do mesmo ano há uma tela rosa com uma frase a roxo: "An Erotics of Art". Isto foi no fim, quando Thek se tinha já apagado do mercado, gigante tornado fantasma em vida, com empregos precários em supermercados e hospitais e sem dinheiro para pagar os tratamentos anti-retrovirais que lhe custavam mil dólares por mês. Mas antes do fim houve uma primeira morte. Lá atrás, em 1967, e em eterno conflito com a cena artística nova-iorquina - "Uma praga... a mais mortal de todas as mortais" -, Thek, prestes a mudar-se para a Europa, encena a sua morte em "The Tomb", o primeiro dos seus "environments", trabalhos devedores de uma lógica de imersão total do espectador e com abertura suficiente para poderem ser alterados a cada nova apresentação através da eliminação ou inclusão de elementos. Em "The Tomb" - mais conhecida como "Death of a Hippie", título a que Thek se opunha completamente - a forma da pirâmide presente em todos os relicários transformou-se num espaço à escala humana, um interior rosa choque habitado por uma auto-representação do artista feita em cera e também vestida de cor-de-rosa. Deitado por terra, dedos das mãos cortados, olhos fechados e língua pateticamente de fora, Thek transitava para outro nível: na mesma semana em que inaugura na Stable Gallery este peça, trampolim da sua verdadeira consagração, embarca rumo à Europa com uma bolsa Fulbright para voltar definitivamente apenas já nos anos 1980. "[The Tom] é uma grande obra de arte. É um santuário do antiamericanismo, do antipatriarcal. Mesmo assim, fala uma linguagem dos Estados Unidos, uma linguagem baixa e suja": foram as palavras de Mike Kelley em 1992, três anos antes da primeira grande retrospectiva dedicada a Thek. O título dessa mostra diz tudo: "Paul Thek: the wonderful world that almost was", "Paul Thek: o mundo maravilhoso que quase aconteceu" - foi uma iniciativa de um museu europeu, o Witte de With, de Roterdão.

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