26/12/2010

GEAN GENET

Se eu estou sozinho, posso falar a verdade. Se estou com alguém, minto. Eu sou marginal", poderia ter-lhe respondido, como disse mais tarde a um amigo escritor, Tahar Ben Jelloun.

"Com excepção dos seus livros, não sabemos mais dele do que a data da sua morte, que ele imagina próxima", disse Rainer Werner Fassbinder, o realizador alemão que adaptou "Querelle de Brest".

O pescoço ameaçado pela lâmina. A pedra atirada à cabeça. O cuspo apontado à cara. De quem? Do inimigo: a lei, a ordem, a autoridade, a moral, a religião, a pátria, o Estado, a sociedade, a classe, a civilização, tu, eu ("Falta-nos ódio. Dele, nascerão as nossas ideias").

Isto, a obra. Este, o autor: Jean Genet nasce a 19 de Dezembro de 1910 (há 100 anos), num hospital, e morre a 15 de Abril de 1986, num hotel. O hospital e o hotel são em Paris, mas a mesma cidade para nascer e morrer não diz a sua vida nómada. Essa, contada quase dia a dia por Edmund White numa biografia.

Filho de pai incógnito, é abandonado pela mãe num asilo. Na carta à Assistência Pública, ela dá a sua miséria como razão para não poder ficar com o filho. Escrita com desespero e súplica, esta é uma das quatro cartas agora conhecidas, único rasto desta mulher sem rosto cuja vida durou apenas 30 anos e que o génio do filho não deixa morrer. Já velho, Genet podia ter ido ao arquivo, mas não quis. "Tarde de mais", foram as palavras da sua recusa.

Aos 14 anos, começa a verdadeira vida ("Viver é sobreviver a uma criança morta"): fugas, roubos, tratamentos, prisões. Internado numa casa de correção, inicia-se na leitura e no amor. Alista-se na Legião Estrangeira: Damasco, Beirute, Marrocos. Deserta e corre a Europa. É expulso, quando não é preso. Rouba, quando não é roubado. Engata, quando não é engatado.

Regressado a Paris, prendem-no por roubo e falsificação. Lê: romances populares, Dostoievski, Proust, Nietzsche, outros. Na prisão de La Santé, começa "Nossa Senhora das Flores". Sai e volta a ser preso. Na prisão de Fresnes, escreve "O Condenado à Morte". Estes textos circulam como uma lança que passa de mão em mão. Cocteau lê-os e, deslumbrado e invejoso, dá-os a ler. Desde Sade, não se via nada tão violento. Desde Chateaubriand, nada tão eloquente. Desde Proust, nada tão perverso. Começa a idolatria e também o escândalo. É preso pela última vez: Cocteau, Sartre e outros, invocando-lhe o génio, pedem e obtêm o indulto. Só em França, esse país literário, isto podia acontecer.

Escreve "Milagre da Rosa", "Querelle de Brest", "Pompas Fúnebres", "Diário de Um Ladrão". Sartre existencializa-o em 600 páginas de prefácio às suas "Obras Completas": "Sain Genet, Comediante e Mártir". É a glória e o dinheiro. Ele lê o livro e fica seis anos sem escrever. Sai desse silêncio com o grito do seu teatro. Célebre no mundo, vive e ama na tragédia. Não tem casa. Nunca se sabe onde está. Funâmbulo da vida, ama um funâmbulo da morte ("Um artista de circo que se deixa aplaudir é já um burguês"). Radical e provocador, apoia causas, revoltas, terrorismos: Panteras Negras, Palestinianos, Baader-Meinhof. Mas confessa que se os negros americanos e os árabes não fossem tão belos não os apoiaria tanto.

Na sua escrita ("Escrever é levantar todas as censuras"), o mais lírico e refinado francês vive com o mais duro e vulgar calão. Na sua teologia, as virtudes são o roubo, a traição e a homossexualidade ("Um macho que beija outro macho é um macho a dobrar"), vivida como transgressão e castigo. Excluído pelo nascimento, fez da exclusão o seu contra-ataque: o excluído exclui. Traído, trai. Tudo se inverte na sua contramoral: o pecado é a virtude e o profano é o sagrado. Genet é o santo do mal ("A santidade é forçar o Diabo a ser Deus").

José Manuel dos Santos, Expresso.

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