01/06/2009

Nick Cave

O músico australiano está a celebrar 25 anos à frente dos Bad Seeds, com a reedição da discografia da banda. Entrevista exclusiva com um ícone rock. Há 25 anos, Nick Cave publicou "From her to eternity". Foi o primeiro disco como líder dos Bad Seeds, um dos mais notáveis veículos criativos que o rock acolheu. As celebrações incluem a reedição da discografia da banda, com os primeiros quatro álbuns - que incluem um DVD - já disponíveis no mercado português. De Brighton, Inglaterra, onde reside actualmente, em entrevista exclusiva para Portugal, o músico australiano não afastou o passado, mas o que o entusiasma é o que está para vir. A voz, essa, faz jus ao mito. Quer ele queira, quer não... "An understanding of sorrow" (uma compreensão do sofrimento) - título do texto que escreveu para a reedição do álbum "In my own time", de Karen Dalton - pode ser uma espécie de síntese da sua obra? Pelo menos em parte, sem dúvida. A face intangível, misteriosa do sofrimento interessa-me. É um dos meus interesses. Ao fim de 25 anos de Bad Seeds, qual a sua perspectiva sobre os quatro discos agora reeditados? Na verdade, olho para cada um deles de forma diferente. Por exemplo, quando gravámos "From her to eternity" [primeiro álbum, de 1984], eram apenas quatro tipos sem ideia absolutamente nenhuma sobre o que iriam fazer em estúdio. Queríamos, tão-só, tentar descobrir um determinado tipo de música e, por isso, o disco tem um fantástico sentido de aventura de que gosto bastante. Na minha opinião, o álbum tem umas quantas faixas excepcionais, algumas das quais ainda tocamos ao vivo. A canção-título é uma delas. Há algo que conseguimos atingir neste tema em particular que jamais fomos capazes de repetir. Apesar de toda a sua simplicidade, da sua nudez, há tanto a acontecer nesta canção. Continuo a achá-la entusiasmante sobretudo por isso. Muita da minha música é difícil de escutar, mas "From her to eternity" é uma canção que não sofre desse estigma dramático. "From her to eternity" traduz fielmente o que estava a acontecer na sua vida privada? Para ser franco, nem sei muito bem… De qualquer forma, foi um período conturbado, dos vários que enfrentou. Em cerca de 30 anos de carreira e com tantas vicissitudes, pessoais e profissionais, nunca se colocou a si e à sua capacidade artística em causa? Nunca. Olho para trás e vejo períodos mais fracos e períodos mais fortes. Mas não me apercebo dessa diferença quando estou a passar por eles. Sempre fui extremamente optimista sobre o que estou a fazer em dado momento. De outra forma, não o poderia fazer. Sempre senti que, qualquer que seja o disco em que estou a trabalhar, ele é o melhor de todos os que o Mundo virá a ouvir. Tenho de sentir isso, de que estou a realizar a maior obra de arte. Claro que sei que isto não é necessariamente verdade. Mais tarde, olho para o álbum e penso que tem determinados defeitos quando comparado com outro qualquer. Aliás, tenho tendência para gostar mais dos discos menos bem sucedidos. Eles precisam do meu "apoio"… Ainda assim, foi com alguma surpresa que, no DVD de "Abattoir blues/The lyre of Orpheus" [álbum de 2004], o vi defender de forma tão vincada o seu trabalho, dizendo: "estas são boas canções, tenho muito orgulho nelas". Em certos momentos do seu percurso, você não parecia exactamente orgulhoso da sua obra… Coloquemos as coisas desta maneira: sou uma espécie de ego maníaco, com uma baixíssima auto-estima. Portanto, tanto posso sentir-me mesmo bem em relação ao que faço como tão mal quanto você possa imaginar. E isto pode acontecer dez vezes por dia. Então, nunca sei, realmente, como me sinto em relação seja ao que for… Como se sente agora? Bastante bem, porque, há pouco (ainda tenho a guitarra junto a mim), escrevi um conjunto de acordes e letras que me soou "fucking good" e, de repente, sinto-me no topo do Mundo. Mas este sentimento pode evaporar-se. Daqui a dez minutos, pode ser uma história completamente diferente. Para mim, essa é a piada de eu ser assim. Francamente, hoje em dia, já nem ligo muito a estas oscilações. De qualquer forma, e apesar de todas essas idiossincrasias, tem consciência da importância da sua obra e da aura quase mítica associada ao seu nome.... Sabe que atingiu um estatuto ímpar na mitologia rock… Não sei… E não digo isto de um modo humilde, de falsa modéstia. Apenas não sinto isso em relação ao que fiz. Não é benéfico ler esse género de coisas acerca de nós. Não é eficaz pensar dessa forma. Na minha carreira, tudo o que realmente me interessa é a liberdade de trabalhar sem interferências, fazendo tudo o que quiser. A grande interferência para qualquer artista é o seu próprio mito, e se começamos a acreditar no que dizem sobre nós, dissolvemo-nos sob a pressão. Não é do meu interesse crer nesse tipo de análise. Podem escrever todas essas coisas na minha campa. O que pensam os seus filhos mais velhos sobre a música que faz? O Jethro também está envolvido na música, num projecto de hardcore. Mas nunca falamos sobre isso. Penso que ele não ouve o que faço. De qualquer modo, creio que considera que me tenho safado bem, que não sou um completo embaraço para ele. O Luke não se interessa por música dessa maneira. Acho que ele pensa que tenho algumas boas canções, mas não está interessado na minha vida profissional. Apenas que ela serve para lhe proporcionar dinheiro… Vive em Brighton e tem um escritório, onde trabalha. Parece ter adoptado um método mais rigoroso, mais ordenado… Mas sempre tive esse tipo de método. Quando fiz os discos de que temos estado a falar, a minha forma de trabalhar era idêntica à de agora. Sempre me sentei a uma secretária, sem ninguém por perto, e trabalhei na minha música. Fiz sempre isto. Esse é um dos mitos sobre mim, de que, a certa altura, me foi dada a hipótese de trabalhar num escritório. O facto é que, quando gravei estes álbuns, não tinha meios de ter um. Vivia nas casas de outras pessoas, dormia no chão ou esgueirava-me para os quartos… Coisas destas. Portanto, nunca tive a oportunidade ou o dinheiro para alugar um espaço e, mal a tive, arrendei um e comprei uma secretária. O método é o mesmo, as condições é que mudaram. Qual acha que será a reacção de quem só conhece "Dig, Lazarus, dig!!!" [o mais recente álbum, do ano passado] a estes discos? Não sei. Penso que existem muitos aspectos em "Dig, Lazarus, dig!!!" que têm a ver com estes álbuns. Um deles é ter havido, em certos temas, um esforço evidente de fazer música essencial, sem carga supérflua. Devido a estas reedições, nos próximos concertos, vão apresentar mais temas destes álbuns ou o alinhamento será similar ao dos concertos que deram em Portugal em 2008? Vamos tocar em alguns festivais no Verão e, certamente, incluiremos algumas canções destes álbuns. Mas, como adoramos tocar o material de "Dig, Lazarus, dig!!!", posso assegurar-lhe que haverá muito dele. Ed Kuepper [co-fundador e guitarrista dos australianos Saints, uma das principais influências de Nick Cave, em especial, das primeiras bandas, os Boys Next Door e os Birthday Party] vai tocar convosco nesses concertos. Há alguma hipótese de ele se tornar membro permanente dos Bad Seeds? Bem… Vamos ver. Ainda não tocamos com ele. De qualquer forma, Ed Kuepper é um dos melhores guitarristas do planeta, admiro-o desde sempre. E o que ele faz nos discos a solo é extraordinário. Além disso, não perdeu qualquer das qualidades que tinha nos Saints. Pelo contrário, melhorou-as. Portanto, é uma honra enorme para nós tocar com ele. E o Ed também está muito entusiasmado por fazê-lo. Dir-se-ia que é uma espécie de círculo… Os Boys Next Door e os Birthday Party foram influenciados pelos Saints e, agora, Ed Kuepper toca consigo. Pode falar-se em algo como uma "vitória" pessoal sua? Não encararia isso dessa forma. O Ed é músico e oferecemos-lhe um trabalho, e ele está ansioso por começá-lo. É assim que vemos a situação. Ele nunca abandonou a carreira a solo, à qual dá muitíssima importância. Da mesma maneira, todos os elementos dos Bad Seeds têm projectos paralelos à banda. O Ed vai manter o que faz a nível individual e tocar guitarra nos Bad Seeds. Como disse, temos de ver como vai correr. Os Bad Seeds sempre tiveram a ver com a capacidade em relacionarmo-nos bem enquanto pessoas. É a minha primeira prerrogativa quando contrato alguém. Para mim, esse aspecto é mais importante do que o talento. Temos andado em digressão com o Ed porque ele tem feito as primeiras partes dos nossos concertos e damo-nos bem. Como reagiu à decisão do Mick Harvey [fundador dos Bad Seeds, dos Boys Next Door e dos Birthday Party e amigo de Nick Cave há mais de 30 anos] de deixar a banda? Fiquei bastante surpreendido ao saber que ele ia sair. Mas creio que o Mick achou que já tinha tido o suficiente de digressões e da vida do rock 'n' roll. Penso que teve a ver apenas com isso. Por outro lado, o papel dele na banda foi mudando… A saída dele pode afectar a sua música? Espero bem que afecte. Não tenho receio da mudança. Sempre tentámos que cada disco dos Bad Seeds tivesse um carácter único, que fossem diferentes uns dos outros. Quando o Blixa Bargeld [outro dos fundadores dos Bad Seeds, líder dos alemães Einstürzende Neubauten] saiu, foi uma situação muito triste para mim, porque éramos muito chegados, mas, ao mesmo tempo, constituiu uma grande oportunidade para a banda. O som mudou instantaneamente. É, agora, o único músico original da unidade criativa Nick Cave and The Bad Seeds. Julga que poderia ter feito mais para evitar certas saídas ou encarou-as sempre como mais uma oportunidade para mudar? A nível pessoal, há, claro, algumas mágoas. Com o Mick, a saída dele, apesar de ter sido uma surpresa, era algo de que já tínhamos falado bastante. Ele, realmente, achava que estava na altura e todos entendemos isso e encarámos bem. Mas o Blixa… Eu não sabia que ele ia sair, a única coisa que recebi dele foi um email. Sinto muito a falta do Blixa. Porque, mesmo sabendo que ele não estava muito envolvido no último disco que fez, o "Nocturama", e que o que ele propunha não era muito interessante, de repente, foi embora. E o Blixa era uma das pessoas que eu mais estimava, gostava muito dele. Ainda gosto. De certa forma, a ida dele destroçou-me, mas, ao mesmo tempo, sou um profissional, um músico, um artista e consigo ver uma oportunidade mesmo na ausência de alguém. Isso é positivo. Mas gostava muito que ele estivesse na banda, mas não está. Que vou fazer? Fiquei magoado durante alguns dias e, depois, acabou. Continuei em frente... Algo que também está em vias de sofrer algumas alterações é o seu estilo literário. Ao que sei, o novo livro ["The death of Bunny Monro", a publicar em Setembro próximo] é bastante diferente do primeiro… Sim, é muito diferente em todos os sentidos. Quer dizer, os sinais do esforço de escrever de forma tão bela quanto possível continuam lá, mas não é tão complicado de ler como "And the ass saw the angel", que é uma espécie de grande pesadelo do Inglês. O novo livro é fácil de ler, a linguagem é muito mais simples. É uma espécie de fábula. Além da literatura, a música para filmes parece continuar a atraí-lo. Em absoluto. Eu e o Warren Ellis [elemento dos Bad Seeds] acabámos recentemente a música para "The road" [filme baseado no livro homónimo de Cormac McCarthy, realizado por John Hillcoat], para sair em Outubro. Além disso, escrevi outro argumento para o John, uma espécie de história norte-americana que ele vai realizar para Hollywood. Continuo, de facto, muito interessado nesta área. Encara a produção de bandas-sonoras e os Grinderman [projecto de Nick Cave com alguns dos Bad Seeds] como contraponto ao "peso" dos Bad Seeds? De certa forma. As bandas-sonoras são muito interessantes porque não tenho de escrever letras, apenas música. Escrever canções para os Bad Seeds é, realmente, o que me coloca maiores dificuldades. Em comparação, escrever um romance ou um argumento é muito fácil. Os Grinderman são outra coisa, um grupo no qual sinto uma liberdade enorme de fazer seja o que for. Aliás, estamos a gravar o segundo álbum. Vai ser editado em 2010. E o novo dos Bad Seeds? Em princípio, também sai no próximo ano. Estou bastante ansioso por voltar ao estúdio com os Bad Seeds, para ver o que acontece. Creio que algumas faixas de "Dig, Lazarus, dig!!!" poderiam encaixar-se no álbum dos Grinderman e vice-versa. Concorda? Julgo, sobretudo, que "Did, Lazarus, dig!!!" não seria o álbum que é se eu não estivesse envolvido nos Grinderman. Estar nos Grinderman é ir para estúdio e experimentar tudo. É uma experiência extremamente libertadora. Saímos do disco dos Grinderman muito mais fortes em termos criativos e "Dig, Lazarus, dig!!!" é a prova. Estamos a gravar o novo álbum e o método é o mesmo. É a beleza dos Grinderman: não nos importa que falhemos. Pode ser um completo desastre e ninguém se preocupa. É incrivelmente libertador. No entanto, perante as expectativas que se vão criando em torno de novos discos dos Grinderman, não crê que a pressão pode tornar essa experiência menos libertadora? Se for esse o caso, paramos com os Grinderman. Não é um problema que receemos. É correcto dizer que as diferentes proveniências dos elementos dos Bad Seeds - tanto estéticas como geográficas - contribuem decisivamente para a extrema elasticidade e riqueza do som da banda? Quando começámos os Bad Seeds, estávamos numa posição muitíssimo boa, porque muita gente gostava do grupo. Por isso, quando, por exemplo, perguntámos ao Barry Adamson ou ao Kid Congo Powers se queriam tocar connosco, eles disseram logo que sim. Recrutávamos pessoas facilmente. Eu já não vivia na Austrália, o que permitia contratar músicos de qualquer parte. E essa situação mantém-se, o que faz de mim uma pessoa bastante afortunada. Recentemente, vi o Kid Congo Powers ao vivo. Um bom concerto, mas algo auto-referencial. Ele não evitou recorrer a temas de bandas por onde passou, como Gun Club e Cramps. Ao fim de 30 anos de carreira, não teme cair na tentação de explorar o passado, em detrimento da música mais recente? Bem, nunca fizemos isso. Os concertos da digressão anterior, relativa a "Abattoir blues/The lyre of Orpheus", só tinham temas do novo álbum. Nos encores é que tocávamos coisas mais antigas. A tournée mais recente foi constituída essencialmente por temas de "Dig, Lazarus, dig!!!". Por isso, creio que não vou cair na situação que referiu. No entanto, são todas canções minhas e tenho o direito de tocar o que quiser. Acerca de referências, além de ter feito um álbum de versões, costumava incluir uma ou outra nos discos de originais, algo que não faz há algum tempo. Perdeu o hábito? Na verdade, ainda recentemente o fiz e está relacionado com os Gun Club. Foram encontradas algumas cassetes do Jeffrey Lee Pierce [líder dos Gun Club, já falecido] com faixas que a banda nunca gravou. Então, quem as encontrou convidou várias pessoas para cantar os temas. Gravei uma das canções, belíssima, precisamente ontem [7 de Maio]. A Debbie Harry [cantora dos Blondie] também participa, ela canta uma versão lindíssima de "Lucky Jim". Muito, muito bonita...

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