"Reclama o teu poder e os teus direitos
Da Justiça despótica extorquidos."
Bocage viveu numa época de crise evidente. A economia era frágil, o ouro do Brasil esvaía-se no luxo desenfreado da Corte, o erário público era delapidado pelas despesas abissais da marinha e do exército. As amplas e radicais reformas encetadas pelo Marquês de Pombal foram sistematicamente subvertidas. O povo indigente gemia a sua impotência.
Parece que existem coincidências, só que mudam-se os actores mas os cenários e a peça é sempre a mesma. Há filmes que nunca vão mudar o argumento......
Em 1805, com 40 anos, de saúde sempre frágil, ficou cada vez mais debilitado, devido à vida pouco regrada que levara, faleceu na Travessa de André Valente em Lisboa, perante a comoção da população em geral. Foi sepultado na Igreja das Mercês.
A literatura portuguesa perdeu, então, um dos seus mais lídimos poetas e uma personalidade plural, que, para muitas gerações, incarnou o símbolo da irreverência, da frontalidade, e da luta contra o despotismo.
Se Camões foi o poeta dos intelectuais, Bocage foi adoptado pelo povo português como porta-voz das suas expectativas, ambições e reivindicações.
No século XVIII prevalecia um puritanismo limitador. Era difícil uma pessoa assumir-se integralmente, de corpo e alma. Tabus sociais, regras estritas, uma educação preconceituosa, a moral católica tornavam a sexualidade uma vertente menos nobre do ser humano. Por outro lado, uma censura férrea mutilava os textos mais ousados e a omnipresente Inquisição demovia os recalcitrantes. Em presença desta conjuntura, ousar trilhar a senda do proibido, transgredir era, obviamente, um apelo inexorável para os escritores, uma maneira salutar de se afirmarem na sua plenitude, um imperativo categórico.
Em Bocage, a transgressão foi pedra de toque, o conflito generalizado. As suas críticas aos poderosos, a determinados tipos sociais, ao novo-riquismo, à mediocridade, à hipocrisia, aos literatos, o seu anti-clericalismo convicto, a apologia dos ideais republicanos que sopravam energicamente de França, a agitação que disseminava pelos botequins e cafés de Lisboa, o tipo de vida "pouco exemplar" para os vindouros e para os respeitáveis chefes de família e a sua extrema irreverência tiveram como corolário ser considerado subversivo e perigoso para a sociedade.
Poder-se-á afirmar que a poesia erótica de Bocage adquiriu uma dimensão mais profunda do que a que foi composta anteriormente. Pela primeira vez, é feito um apelo claro e inequívoco ao amor livre. A "Pavorosa Ilusão da Eternidade - Epístola a Marília", constitui uma crítica contundente ao conceito de um Deus castigador, punitivo e pouco sensível ao sofrimento da humanidade.
O referido poema, bem como o seu estilo de vida, estiveram na origem do seu encarceramento, por ordem irreversível do intendente Pina Manique, irrepreensível guardião da moral e dos costumes da sociedade. A prisão do Limoeiro, os cárceres da Inquisição, o Mosteiro de S. Bento e o Hospício das Necessidades, por onde sucessivamente passou para ser "reeducado", não o demoveram da sua filosofia de vida, estuante de liberdade, interveniente, pugnando pela justiça, assumindo-se integralmente, ferindo os sons da lira em demanda do apuro formal que melhor veiculasse as suas legítimas preocupações.
Só cerca de cinquenta anos após o falecimento de Bocage, foram publicadas pela primeira vez as suas poesias eróticas.
A avaliação da obra de Bocage é, por vezes, feita a partir de conceitos redutores que a empobrecem sobremaneira. Não surpreende, assim, que o seu verdadeiro lugar na história da literatura portuguesa não lhe seja reconhecido e que, em Junho de 2001, tenha sido alvo – na companhia de outros expoentes das nossas letras como Fernão Mendes Pinto, Antero de Quental e Gil Vicente – de uma marginalização inaceitável: a exclusão do programa obrigatório do Ensino Secundário.
Bocage 1765-1805
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