09/10/2010

FAUST EM LISBOA 2010

Os alemães que prenunciaram o punk, o pós-punk e a electrónica experimental regressaram a Portugal, Lisboa. Os actuais Faust estão reduzidos a dois membros fundadores são liderados pelo carismático Jean-Hervé Péron e pelo baterista Werner «Zappi» Diermaier. Em palco juntam-se o casal James Johnston (Gallon Drunk, ex-Bad Seeds de Nick Cave) e a multifacetada Geraldine Swayne (pintora, realizadora de filmes independentes) continuam a despertar atenções como se viu pela enchente no Teatro Maria Matos. Quem viu não mais esquece a fantástica e caótica noite que os Faust proporcionam.

As actuações ao vivo, são experiências violentas e surpreendentes com tanto de "happening" quanto de concerto, são míticas.

Quem arriscou ganhou, e eu posso confirmar. Faust / Dälek, Casa da Música, Porto, 14 Abr 2006. Quando os vi neste dia senti o mesmo. Já vi mais de 200 e muitos concertos (não bandas), e os Faust foram um dos melhores de sempre. Há frente só os The Residents, Frank Zappa, ou The Red Krayola. Numa altura em que se celebrava o primeiro ano de existência da Casa da Música , o concerto de Faust no Porto(foi uma das poucas cidades europeias a receber a banda alemã) celebrava igualmente outro acontecimento: os 35 anos de existência da banda, e não mais me esquecerei da fantástica e caótica noite que Hans-Joachim Irmler (teclados), Steven Wray Lobdell (guitarra), Michael Stoll (baixo e flauta), Lars Paukstat (percussão e vozes), Jan Fride-Wolbrandt (bateria) e John Silk (som)os Faust, nos presentearam.

O jovem e alienado Lars Paukstat foi responsável pela percussão mais peculiar e pelos utensílios bizarros (ferros contra ferros numa banca que não passava despercebida a ninguém e até uma enorme chapa metálica onde chegou a bater com umas correntes e com um enorme martelo, produzindo um barulho imaginável). A certa altura, Lars Paukstat chegou-se à frente onde estava uma enorme viga de ferro e, com uma rebarbadora, provocou uma verdadeira explosão de faíscas (que atingiu o corajoso público instalado nas primeiras filas) que durou alguns minutos e que produziu um efeito sonoro e visual impressionante. Pouco depois o mesmo Lars Paukstat pegou noutra rebarbadora para fazer o mesmo junto da grande chapa de ferro que se encontrava junto de um dos lados do palco.

Na primeira parte do concerto estiveram os Dälek, duo formado por Will Brooks (na voz) e Oktopus (nas máquinas) que gravaram em tempos Faust vs Dälek com os Faust. Mas era obviamente Absence o principal motivo da noite; batidas fortes e agressivas a que se juntam guitarras de características iguais abastecidas por letras inteligentes e, muitas vezes, sarcásticas.

Esta semana, dia 6, Outubro, em Lisboa o publico também foi surpreendido com um arranque insólito. Segundo o Diario Digital, em frente das cortinas ainda fechadas, dois rudimentares kits de bateria esperavam os músicos enquanto uma voz introduzia a banda mas em vez de ouvirmos os habituais pedidos para desligar os telemóveis e proibir gravações há um apelo à liberdade de gravar e tirar fotos à vontade do público convidando ainda os fãs a conhecerem a banda no fim sugerindo que levassem comida e perfumes!

Depois Jean-Hervé Péron e Werner «Zappi» Diermaier sobem da plateia para o palco e tomam conta das baterias em pé, um de cada lado quase sincronizados a que se junta uma voz a declamar um texto em bom português. Sem perder o ritmo o narrador é revelado quando se abrem as cortinas e a banda toma os lugares à volta do «nosso» Tiago Gomes! Estava dado o mote para uma noite diferente em que os inesperados recursos industriais fundiam-se na perfeição com o ruído de feedback e as batidas certeiras de Werner «Zappi» Diermaier.

Os Faust em 2010 ao vivo são uma máquina feroz alimentada pela loucura de Jean-Hervé Péron que tanto pode estar em versão calma de baixo na mão como pode andar possuído pelo palco a espalhar gravilha de um balde das obras ou a gritar a agarrado a uma betoneira (sim, houve uma betoneira em palco) que tanto pode girar espalhando mais gravilha em cima do microfone como pode ser perfurada a berbequim!- com Jean-Hervé Péron de berbequim na mão. Tudo serve para fazer barulho, até faíscas de ferro derretido que Péron espalhava pelo chão.

Um espectáculo completamente imprevísivel que nunca perdeu de vista a sonoridade rock que serviu também de banda sonora para Geraldine Swayne improvisar uma pintura numa grande tela que ficou a decorar o canto direito do palco.

Um verdadeiro caos instalado e espalhado pelo palco do Maria Matos que nunca terá vivido nada assim.

Em 1973, Uwe Nettelbeck, o ideólogo dos Faust, dizia ao extinto semanário "Melody Maker" que o que queria fazer com aquela banda seminal do rock experimental alemão era "música popular": "Não quero vê-los no mesmo saco que Stockhauusen ou [John] Cage, aquilo a que chamam músculo experimental. Somos 'avant-garde' não por estilo, mas por acidente".

A começar pelo ponto onde isto começou, Hamburgo, 1969, nasciam os Faust, que é o termo alemão para "punho", e também a lenda alemã do homem que vende a alma ao diabo para garantir sabedoria e delícias terrenas. Curiosamente, tudo começou com "rock'n'roll e coca-cola", escreveu Gunther Wüsthoff num texto incluído na reedição de "So Far", o segundo álbum da banda.

Uwe Nettelbeck, crítico de cinema, jornalista, produtor musical e activista de esquerda com ligação intermitente às Baader-Meinhoff, reuniu os músicos Werner "Zappi" Diermaier, Hans-Joachim Irmler, Jean-Hervé Peron, Rudolf Sosna e Gunther Wüsthoff. Alguns deles estavam ligados à cena experimental alemã, os outros compunham uma banda chamada Campylognatus Citelli.

O punk deve-lhes algum do seu confronto, o experimentalismo multidisciplinar e dadaísta do pós-punk deve-lhes mais ainda, a electrónica aventureira terá de passar por eles. Sex Pistols, Einstürzende Neubauten, This Heat, Stereolab, To Rococo Rot, em todos se nota o toque dos Faust, que estavam à frente do seu tempo na atitude estética.
Porque não aceitavam as suas regras, porque queriam transformar, arriscar, mudar.

A Inglaterra chamou-lhe krautrock, um saco onde às tantas já cabiam bandas tão distintas quanto Can, Neu!, Amon Düul, Electric Sandwich, Kraftwerk ou Tangerine Dream. "Nós chamávamos-lhe música experimental, mas acabou por vencer aquele nome estranho que os ingleses criaram, com um sentido de humor discutível", diz Peron.

Os Faust, sublinha, queriam "mais energia do que a que havia no rock'n'roll, outro tipo de energia": "Queríamos uma nova música. Queríamos mais!".

Dos Velvet Underground retiraram a repetição, o minimalismo. De Frank Zappa, "as harmonias exteriores ao rock'n'roll e os textos socialmente críticos". Dos dadaístas e do movimento Fluxus, a ideia de performance e a utilização do absurdo como arma. E ainda foram buscar as planagens cósmicas aos Pink Floyd, versão buraco negro, o minimalismo a compositores como LaMonte Young ou Tony Conrad (já o vi ao vivo por duas vezes, com quem gravaram, em 1973, "Outside The Dream Syndicate"), e saxofones e trompetes soprados a Miles Davis.

"Não existe grupo mais mítico do que os Faust", escreveu Julian Cope em "Krautrock Sample", o livro que documentou e divulgou à escala mundial o rock experimental alemão da década de 70.

As primeiras actuações ao vivo, no palco escurecido, destacava-se a luz de ecrãs de televisão que seriam destruídos com martelos e serras eléctricas, via-se uma mesa de pinball em que os músicos jogavam quando bem entendessem e os sofás em que os Faust se sentavam para olhar os espectadores, que não sabiam como reagir a tudo aquilo. "Se queríamos exprimir que o poder da televisão era perigoso para todos, haveria melhor forma do que pegar num marrão e destruir 20 aparelhos de televisão em palco?", pergunta Peron. "Aqueles que nos compreendiam ficavam esmagados. Não percebiam o que se estava a passar, mas percebiam que também nós não sabíamos exactamente o que estava a acontecer."


O desmembramento da banda, foi em 1975: "A Polydor tentou e foi uma catástrofe. A Virgin [os Faust foram das primeiras bandas assinadas pela editora do então jovem Richard Branson] tentou também e foi outra catástrofe. Claro que os discos não o são, mas o que acontecia depois de os editarmos era-o certamente".

Os dois primeiros álbuns dos Faust, o homónimo de estreia (1971) e "So Far" (1971), foram gravados numa antiga escola transformada em estúdio, na zona rural do rio Wümme. Isolados, sem contacto com ninguém exterior à banda, trabalharam como que "em meditação num mosteiro".

O casulo foi quebrado quando, numa manhã, acordaram rodeados de cães-polícia e metralhadoras, confundidos com terroristas das Baader-Meinhoff - "Andava tudo histérico com o terrorismo e nós, com as nossas barbas, o nosso cabelo comprido e as nossas roupas, tínhamos obviamente de parecer terroristas". Mas o pior, diz, veio depois.

Com as fracas vendas de discos, com os Faust a serem nada mais do que banda de culto em Inglaterra - ainda assim, bem melhor sucedidos do que no seu país -, a Polydor percebeu finalmente que os Faust não seriam uns novos Beatles. "Estavam distantes estes tempos de 'do it yourself', em que qualquer um pode ter um estúdio no computador", aponta Peron. Desalojados, roubaram o seu próprio equipamento, reclamado pela editora, e vaguearam. "Wümme foi um final difícil. Sem dinheiro, sem trabalho. Acabámos a comer comida de cão".

Pouco depois, nova oportunidade com a Virgin. Nettlebeck, antecipando a estratégia Radiohead, deu a Richard Branson a colagem, extraída dos extensos arquivos da banda, que resultaria no álbum "Faust Tapes". Com uma condição: o álbum teria de ser vendido ao preço de um single. 100 mil cópias foram vendidas em 1973 - 90 por cento dos compradores, diz-se, detestaram a pechincha, os restantes empregariam aquela explosão criativa anos depois, quando o punk se fez ouvir.

No ano seguinte, "Faust IV" foi um fracasso comercial e "Faust V", o álbum seguinte, não chegou a sair. Tal como tinham aparecido, os Faust desapareciam na paisagem alemã: "Transformámo-nos num mistério".

Até que, em 1992, Hans-Joachim Irmler, Werner Diermaier e Jean-Hervé Péron se reuniram para alguns concertos, reactivando uma história bruscamente interrompida - Rudolf Sosna morreu em 1996, Gunther Wüsthoff recusou-se a participar na reunião. Daí para cá, gravaram novo material, colaboraram com Chris Cutler, com os americanos Dälek, experimentalistas do hip hop, ou com Jim O'Rourke e To Rococo Rot.

Em 2010, três anos depois da morte de Uwe Nettelbeck, Jean-Hervé Peron e o baterista Werner "Zappi" Diermaier, acompanhados por Geraldine Swayne e James Johnston estreiam-se em Portugal para um concerto no Maria Matos. Sobre ele, Peron não diz mais do que isto: "A primeira regra dos Faust é não existirem regras.

A segunda é nunca revelar o que faremos em palco no próximo concerto". O objectivo continua a ser "provocar, abanar, obrigar a questionar". O baixista quer que o público saia dos concertos "com um grande sorriso, mas também com par de pontos de interrogação nos olhos": "Estrelas e pontos de interrogação, é isso que queremos atingir hoje com a nossa música".

Os novos Faust reagruparam-se a partir de 1992, mas são apenas uma parte da banda original. Os Faust que tocaram no Maria Matos têm na formação apenas dois dos fundadores. Existem hoje dois Faust no mundo - estes que veremos em Lisboa, e uns outros, liderados por Hans-Joachim Irmler.

A cisão não foi pacífica. "É um assunto muito privado" que Peron prefere não comentar. Mas, depois de uma breve pausa, termina com aquilo que tanto pode ser manifestação de humor quanto declaração de vitória: "Finalmente é verdade. Os Faust são mais. Não são menos. São mais".

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