09/05/2009

Johnny Cash at Folsom Prison

Jim Marshall, fotógrafo, lembra-se de ouvir o som da grande e pesada porta de aço da prisão fechar-se nas suas costas e de sentir um arrepio. Algum tempo antes, conta, disparara um revólver sobre alguém durante uma discussão: "Eu podia estar ali", recorda, quarenta anos depois. "Jim, há uma sensação de permanência neste som", murmurou-lhe Johnny Cash nessa manhã de 13 de Janeiro de 1968, quando as portas da prisão de Folsom se fecharam nas costas da equipa formada por músicos, pelo fotógrafo Jim e demais imprensa que acompanharia o dia em que a música popular urbana construiu uma das suas lendas. "I shot a man in Reno / Just to watch him die", os famosos versos de "Folsom prison blues", editada em 1955, um dos sucessos iniciais de Johnny Cash e canção fulcral para a construção da mitologia do "Man In Black", ganharam ali toda uma outra ressonância. Cash actuava numa prisão de alta segurança californiana, actuava perante aqueles que o consideravam um dos seus. Cantava-lhes o crime de "Folsom prison blues", cantava-lhes "25 minutes to go", relato em humor tétrico dos últimos momentos de um condenado à morte, cantava-lhes os tiros de "Cocaine blues" e, depois, a redenção de "Green, green grass of home". "Johnny Cash era aquela voz amistosa", recorda um dos detidos que o viram em Folsom. "Sou exactamente como vocês": assim resume a atitude do cantor um dos guardas prisionais de serviço nesse dia.Na manhã de 13 de Janeiro de 1968 - deu dois concertos, o primeiro às 9h40, o segundo três horas depois. Vemo-los e ouvimo-los em "Johnny Cash At Folsom Prison", documentário de Bestor Cram, com argumento de Michael Streissguth, que recria a lendária actuação - o filme passou na secção Indie Music do Indie Lisboa. "Johnny Cash At Folsom Prison" traça todo o percurso até ali chegar. Temos a história conhecida, a do filho de um agricultor do Arkansas que cresceu, durante a Grande Depressão, a ouvir os sons da rádio e os hinos religiosos da mãe. A do músico que, com os Tennessee Two, o guitarrista Luther Perkins e o contrabaixista Mashall Grant entrou nos míticos Sun Studios de Memphis, os que popularizaram Elvis Presley, com canções gospel e foi recusado. Regressou com o country'n'roll de "Hey porter" e "Cry cry cry" e tornou-se uma estrela. Ouvimos os filhos e os músicos que com ele tocaram falar do seu génio e do seu carisma, de como parecia "mais feliz quando as coisas não corriam bem". Cruzando imagens de arquivo com filmagens actuais - em Kingsland, onde nasceu, ou na prisão de Folsom -, usando a reportagem fotográfica de Jim Marshall para reconstituir o concerto (do qual não há gravações vídeo) e sequências de animação para dar vida às canções ali interpretadas, o documentário conta outras histórias. Mostra-nos como o mito do "outlaw" Johnny Cash resulta de uma construção - nada que o menorize, que o seu génio, de resto, reside também na naturalidade dessa criação. Sabemos que Johnny Cash nunca esteve realmente preso - passou, no máximo, uma noite na prisão. A inspiração para "Folsom prison blues", por exemplo, nasceu da solidão que sentia enquanto cumpria serviço militar em Berlim e de "Inside The Walls Of Folsom Prison", filme de Crane Wilbur que viu enquanto destacado na Alemanha. A riqueza de "Johnny Cash At Folsom Prison" reside, primeiro, na forma como recria os passos que conduziram ao concerto e o concerto ele mesmo - e como, nesse movimento, revela tudo aquilo que fez de Johnny Cash uma figura maior, imprescindível, da música popular. Quando o gravou, uma década depois de ter levado a sua música a uma prisão pela primeira vez, Cash era um homem renascido, recuperado de um longo historial de dependência de anfetaminas e barbitúricos e finalmente casado com June Carter. Entre aqueles que o ouviram em Folsom, um destacou-se decisivamente. O seu nome é Glen Sherley e era personagem cujo percurso não se limita a parecer saído de uma canção de Johnny Cash: de certa forma, é como se fosse o reflexo, trágico e amaldiçoado, dele próprio. À altura do concerto, Sherley cumpria pena por assalto à mão armada. Não era a primeira vez. Nascido em 1936, passara parte da sua vida adulta atrás das grades. Glen era também um músico, inspirado pelas mesmas canções country que Cash ouvira na sua infância, no Arkansas, e inspirado, naturalmente, no próprio Cash. Uma das fotos de Jim Marshall mostra-os em Folsom. Sherley de pé na primeira fila, braço estendido em direcção ao palco, mãos unidas num cumprimento. O momento foi captado depois de Cash anunciar que iria interpretar "Greystone chapel", canção que Glen Sherley escrevera em Folsom - a capela do título era a da prisão - e que Johnny Cash e a sua banda (os habituais Tenessee Three, acrescidos do guitarrista Carl Perkins) tinham ensaiado na madrugada anterior. Depois desse encontro, a vida de Glen Sherley mudaria. Tornou-se próximo de Johnny Cash, que se envolveu na sua libertação - no filme, vemo-lo a esperá-lo à porta da prisão, quando saiu em liberdade condicional. Enquanto se empenhava no seu lançamento como músico, levando Sherley em digressão ou, quando este ainda cumpria pena, patrocinando a gravação de um disco, formou com ele uma parceria que levou à denúncia das más condições das prisões americanas ao Congresso - de certa forma, Johnny Cash, esse que ouvimos questionar-se "quão terrível é sentenciar os nossos à morte?", esse que pergunta "como pode este tormento fazer bem a alguém?", foi um dos responsáveis pela reforma do sistema prisional americano na década de 1970. Glen Sherley, contudo, nunca recuperou. Como conta a sua filha, debruçada sobre fotos, recortes de jornais e as memórias de alguém que, diz, fora "o homem mais feliz do mundo" quando viu Johnny Cash tocar uma canção sua, não era fácil viver em liberdade quando a prisão tinha sido a sua vida. O sucesso foi efémero e os problemas com a lei não tardaram a regressar. Desta vez, contudo, Sherley estava decidido a não voltar à prisão. Em 1978, suicidou-se com um tiro de revólver. Johnny Cash pagou o seu funeral.

Sem comentários:

LinkWithin

Related Posts with Thumbnails