A internet é hoje em dia o reflexo daquilo que somos para o bem e para o mal. Eu criei este blogue com o objectivo de falar sobre a cultura pop - musica, cinema, livros, fotografia, dança... porque gosto de partilhar a minha paixão, o meu conhecimento a todos. O meu amor pela música é intenso, bem como a minha curiosidade pelo novo. Como não sou um expert em nada, sei um pouco de tudo, e um pouco de nada, o gosto ultrapassa as minhas dificuldades. Todos morremos sem saber para que nascemos.
15/03/2008
ENTREVISTA À MONDO BIZARRE-2006
A LENDA DE BABY DEE
Por onde começar quando se fala de Baby Dee? Essa foi a primeira questão que me coloquei. A música que é apenas uma parte da fascinante vida de Baby Dee – e que vai ser apresentada dia 5 em Famalicão, na Casa das Artes, e dia 6 em Lisboa, na Zé dos Bois – foi que me levou a fazer esta entrevista.Quando pensei em entrevista-la só tinha como motivo a maravilhosa música que andava a ouvir desde que veio a Lisboa pela primeira vez. Ao investigar mais sobre si descobri que é muito mais do que música. Directora musical de uma igreja católica em Nova Iorque, membro do sideshow de Coney Island, performer (vestida de urso e com um triciclo enorme) nas ruas de Nova Iorque... a música é apenas uma parte da sua vida de artista? Além destas, que outras coisas já fez/faz?
A música sempre foi importante para mim, mas em miúda não era capaz de me sentir à vontade em qualquer contexto musical. Nunca toquei em bandas ou em orquestras e nunca pensei ganhar a vida como música. Fui para Nova Iorque com uma bolsa artística para estudar pintura e foi o que fiz durante três ou quatro anos. Comecei então, gradualmente, a mudar para música. Mas eu era muito acanhada. Não possuía o senso comum que a maioria dos músicos têm para procurar os seus semelhantes e tocar. Não sabia como o fazer. Então candidatei-me ao conservatório e, temendo ser rejeitada (e fui), prometi a mim mesma que se não entrasse pegava no dinheiro que tinha juntado para me inscrever e ia até à Irlanda procurar uma bela harpa antiga. O que é muito estúpido porque é impossível encontrar uma bela harpa antiga na Irlanda. Mas eu encontrei. Encontrei um verdadeiro tesouro, trouxe-o para casa e tornei-me um urso que tocava no parque. Foi maravilhoso. Desde aí ganhei a vida essencialmente com a música. Até que há três ou quatro anos desisti e tornei-me trepadora de árvores a tempo inteiro. Decidi de modo muito firme não continuar a ser artista.Nasceu em Cleveland, não foi? Quando é que tudo começou no que à música diz respeito? Creio que é uma pianista e harpista com treino clássico...
Sim, nasci em Cleveland. Gosto de pensar que a culpa não foi minha, mas já ouvi dizer que escolhemos os nossos pais e local de nascimento antes de nascermos, por isso talvez a culpa seja mesmo minha. A minha mãe cantava desde que me lembro mas foi o meu pai que fez ter vontade de cantar. Até essa altura contentava-me em ter pessoas a cantarem para mim. A minha avó tocava piano em salas de cinema mudo juntamente com o meu avô, que era violinista. Havia sempre música, especialmente lamentosas baladas e canções irlando-americanas como "Praise the Lord and Pass the Ammunition". Eu conto-te o que me levou para a harpa. Havia dois fulanos que viviam do outro lado da rua chamados Bobby Slot and Freddy Weiss (adoro esses nomes) que tinham um piano e não o queriam: arrastaram-no até ao seu jardim para os homens do lixo o levarem mas estes não levaram porque não cabia nos contentores. Então, Bobby e Fred começaram a destruí-lo com um martelo de forja e todos nós achámos isso fantástico. O quarteirão inteiro foi acometido de admiração por Bobby e Freddy e pela sua maravilhosa ideia de escaqueirar um piano, e os homens (o meu pai incluído) de toda a rua apareceram com machados, pés de cabra e martelos e aquilo tornou-se o momento épico da minha juventude. Chegados à parte da armação da harpa de ferro dentro do piano perdeu a piada. Começou a parecer-lhes trabalho e foram todos para casa. O Bobby e o Freddy enfiaram os pedaços do piano nos contentores do lixo, a harpa ficou lá durante boa parte do mês e apaixonei-me por ela.Quando ouvi a sua música pela primeira vez (num concerto em Lisboa, com Current 93, Simon Finn e Six Organs of Admittance) não sabia o que esperar. De repente, quando se sentou ao piano e começou a tocar aconteceu uma coisa extraordinária: era como se eu conhecesse aquelas canções há muito tempo, como se já fossem parte de mim. É uma música tão simples, e, no entanto, tão complexa e tocante. Como escreve e como lhe surgem as canções? É influenciada por alguma coisa em particular? Algumas das canções soam tão inocentes, mas também tão dramáticas...
É um enorme elogio isso que disse sobre conhecer as canções há muito tempo. Talvez soem velhas. O que é mundo quando está for a do seu tempo – anacrónico? Gosto disso. Como escrevo as canções? Quem me dera saber pois escreveria mais. Durante toda a vida quis escrever música mas não podia. “Querer” nunca era suficiente. Não conseguia escrever as canções até “ter absolutamente de o fazer”. As canções nasceram da necessidade. Regra geral surgem primeiro as palavras e depois a música. Raramente a música aparece primeiro, mas mesmo quando assim é a música está a dizer-me algo muito especial que tem que ser transmitido mesmo que ainda não tenha palavras. Podia estar aqui o dia todo a falar de influências mas isso era um aborrecimento. Em vez disso vou contar a minha história favorita. Havia um homem chamado Caedmon. Isto foi há muito tempo, talvez há mais de mil anos [Caedmon é o mais antigo poeta inglês cujo nome é conhecido e viveu no século VII DC]. Na época de Caedmon era costume, depois das refeições, passar-se uma harpa à volta da mesa e cada um dos comensais cantar uma canção. Caedmon não sabia nenhumas canções e arranjava sempre uma desculpa para, quando chegava à sua vez, se levantar. Uma noite recolheu-se e foi dormir. Durante o sono teve um sonho em que lhe aparecia Deus a dizer: “Caedmon, canta-me uma canção”, ao que Caedmon respondeu “O que haverei de cantar?” e Deus respondeu-lhe “Canta-me a criação de todas as coisas”. No sonho Caedmon cantou uma curta e complicada canção sobre uma certa hierarquia dos céus e da terra. Quando acordou lembrava-se da canção e diz-se que desde esse dia foi capaz de escrever e cantar canções. O hino de Caedmon é o primeiro verso escrito conhecido da língua inglesa. Não é uma bela história?O seu primeiro álbum, “Little Window”, foi gravado para a Durtro, de David Tibet, depois de Antony lhe ter apresentado a sua música. Como e quando conheceu Antony? Antony já a descreveu como “A Musa que ajudou a compreender muita da música dos Johnsons”...
Conheci o Antony quando eu dançava em topless no Pyramid. Isto foi vários anos depois de ele lá ter feito a Blacklps Perfomance. Conhecemo-nos, tornamo-nos amigos e ajudei-o um pouco no início, quando ele precisava de partes escritas para violinistas e tal. Isto foi mesmo no início dos Johnsons. Eu toquei harpa no primeiro álbum e em alguns dos concertos da altura. Creio que ele não disse mesmo isso. Somos bons amigos e o trabalho dele tem sido extremamente importante para mim, mas eu não sou Musa de ninguém. A palavra “Musa” dá a ideia de que fui uma inspiração importante para o Antony e nada podia estar mais longe da verdade pois fui útil a nível prático. Essas canções foram escritas muitos anos antes de nos conhecermos e a maioria das mais bonitas é sobre as verdadeiras musas e santas de Antony, como Divine. Ora aí está uma Musa! A ser alguma coisa é ao contrário. Quando o Antony me mostrou as demos em bruto das canções recostei-me na cama dele e chorei. E chorar é coisa que não me acontece frequentemente.”Little Window” tem sido descrito como uma obra-prima pela maioria das pessoas que o ouviram. Quando escreveu essas canções. Foram escritas para o álbum ou muito antes da gravação?
“Little Window” foi a primeira canção a sério que escrevi. Todas as anteriores a essa eram tontices, canções de comédias, coisas para fazer um dólar num bar, na rua ou num bar de stand up comedy. Depois de ter estado na Bélgica regressei a Cleveland e comecei a “ter que escrever canções” e fui gravando cada canção à medida que as escrevia.Esse álbum começa com pássaros a cantar, que são é uma presença nos seus discos até Songs for Anne Marie”. Porquê? De certo modo, ao ouvir os seus discos, o seu modo de tocar piano e a sua voz única fazem-me pensar na Natureza, há neles uma estranha familiaridade. Há histórias antigas que dizem que todos os dias o cantos dos pássaros faz levantar o Sol.
Na verdade “Little Window” começa com o vento e com pássaros e termina com o vento e com bebés a rir. Antes de regressar a Cleveland tive uma dessas – não há palavras boas para estas coisas –, experiências que nos mudam a vida, uma abertura, ou um fim. Não sei o que lhe chamar. Estava a trabalhar com o meu triciclo nas ruas de Amesterdão e queria fazer um espectáculo que fosse mais como o verdadeiro teatro e menos actuação de pedinte. Queria que tudo mudasse mas não sabia como o fazer. Em vez de fazer as pessoas rir e darem-me dinheiro queria que não soubessem se haviam de rir ou de chorar. Tinha uma ideia coerente do que queria o que em mim é coisa rara. Pensei que se o que queria era fazer algo diferente então tinha que ser uma coisa que nunca tinha feito. Nas minhas viagens nunca fazia as coisas que os turistas fazem e então fui à casa da Anne Frank. Isso fez-me querer ler o seu diário. Não sei explicar o que o livro me fez excepto dizer que me destruiu por completo e que agradeci essas destruição. Apreciei-a, até. E enquanto as minhas entranhas se desfaziam fui, durante algum tempo, capaz de ver e ouvir o que verdadeiramente belo há no mundo. E pareceu-me, como me continua a parecer, que os três sons mais bonitos do mundo eram o vento nas árvores (que é especialmente belo na Holanda), pássaros a cantar e os sons que as crianças fazem – rir, gritar, falar. Nessa época deixei de cantar. Deixei até de falar. Há uns chamarizes de pássaros feitos pela Audobon Society e descobri que se amarrasse um desses chamarizes à volta do meu peito com uma fita e o empurrasse contra o meu externo sentia-me como se o pássaro estivesse dentro de mim. Então isso tornou-se a minha fala e ao falar como um pássaro captava a fala das pessoas com as minhas orelhas. Podia-as fazer ouvir como é belo o chilrear dos pássaros verdadeiros e, a partir daí, podia tecer a minha harpa e a minha música de acordeão com a música do vento, os pássaros e as crianças. E então podia olha-las com um olhar que dizia, ”Estão a ver? Estão a ver como sois belos?”. E eles viam com os meus olhos. Era absolutamente extraordinário. Os pássaros sempre fizeram parte do meu espectáculo. Afinal eu era um gato e toda a gente sabe que os gatos gostam de passarinhos. E sim, eu acredito nisso de serem os pássaros que fazem o Sol erguer-se. Mas há uma coisa importante. Nem todos os pássaros o fazem. Só uma raça em particular é que faz o Sol nascer. A maioria está apenas grata pelo nascer do Sol. Na América do Norte são os tordos. Por isso é que digo sempre que a gravação mais importante que fiz foi a dos tordos no quintal da minha mãe. Queria que as pessoas ouvissem a criação de um dia. Os tordos sabem o que fazem.Por alturas do lançamento do livro/CD “Songs for Anne Marie”, veio a Lisboa. Creio que a maior parte das pessoas, tal como eu, desconhecia a sua música – foi uma experiência mágica – mas a reacção do público foi avassaladora. Lembro-me de lá estar com três amigos e de termos olhado uns para os outros absolutamente espantados. Acontece-lhe sempre isto? Dá a ideia de que o palco lhe é natural. Sente-se à vontade nos concertos? Deve ser difícil tocar/cantar canções tão pessoais…
Essas canções foram tocadas pela segunda vez em público nesse concerto em Lisboa. Nos anos anteriores tinha andado a trabalhar no duro para me tornar uma “amadora” em vez de uma “profissional”. Tornei-me numa música amadora e numa trepadora de árvores profissional o que para mim fazia todo o sentido. Foi isso que tornou possível escrever essas canções. Foi como o reverso de entrar num convento. Ou seja, eu pertencia plenamente ao mundo mas mantive essas canções sagradas. Por isso, canta-las para um público foi um grande feito. São canções muito estranhas e enquanto as escrevia nunca as cantei. Durante um ano limitei-me a tocar piano, como a acompanhante de um cantor ausente. Nunca cantava. Só ouvia. Até que chegou uma altura em que me apercebi do absurdo de escrever canções e não as cantar ou de as cantar sem ninguém a ouvir, e aos poucos fui tendo de vontade de as cantar para terceiros. Gosto de cantar para as pessoas mas algumas das canções são-me dolorosas e, por vezes, evito as que detesto. Por vezes torna-se difícil mas a minha experiência da rua e dos freak shows ajuda-me. Posso parecer um pouco frágil em palco mas acredita que não sou. Teriam que começar a atirar garrafas de cerveja e só se uma me atingisse em cheio é que ficaria intimidada. A única coisa que actualmente me magoa é sentir-me desligada, sentir que não estão a perceber-me. Isso é duro.É curioso porque me lembro de sentir que as canções eram muito poderosas, mas, no entanto, parecia-me tão frágil e inocente (e a divertir-se como nunca). Consegue lembrar-se da melhor e da pior experiência que teve em palco?
Toquei em Copenhaga e tive uma noite em cheio. Não me apetecia parar por isso não parei. Creio que toquei durante três horas. Os promotores locais foram muito simpáticos, fizeram um cartaz e bilhetes muito bonitos. A pior experiência... foi na altura em que era um gato com um triciclo em Manhattan. Recebi uma chamada de alguém que queria que eu tocasse numa festa de temática alemã. Perguntara-me se tinha uma roupa apropriada e eu disse “claro”. Pensei numa coisa St Pauli Girlesque mas com um tutu e asas, porque eu uso SEMPRE um tutu e asas. Pensei em algo do género ninfa bosque da Floresta Negra. É que eu tinha uma saia rodada lindíssima... Não me apercebi foi que aquelas pessoas não me conheciam. Não faço ideia como obtiveram o meu número de telefone, mas estavam era à procura de um velho e atarracado acordeonista alemão que andasse por ali a tocar canções alemãs numa espécie de Música no Coração. Quando eu apareci a pessoa responsável olhou para mim, deu um grito de horror e arrastou-me para a cozinha e obrigou-me a envergar umas lederhosen e um pindérico chapéu de felpo com uma pena. Eu tinha colocado bastante maquilhagem e quando fui à casa de banho e me olhei ao espelho foi a minha vez de gritar de horror. Eu era a coisa mais pavorosa que alguma vez vira. Depois soltaram-me no meio da miudagem da sociedade elegante alemã e andei por ali a tocar Kurt Weil, mas se chegasse a 3 metros de alguém começavam a enxotar-me. Então comecei a persegui-los, a gargalhar como uma lunática e a cantar “Springtime For Hitler”. Na verdade até me diverti nessa noite. Um dos meus espectáculos favoritos das ruas de Nova Iorque era o de um homem, um verdadeiro lunático, que ficava na esquina entre a Rua 57 e 7ª Avenida, junto ao Carnegie Hall, e que cantava árias de ópera numa voz muito alta. Mas não se limitava a ficar ali a cantar. Abordava as pessoas que passavam e cantar-lhes como se fosse o Dom Giovani e qualquer transeunte fosse a Donatella. Chegava-se muito perto, cortando-lhes o caminho e olhando-as nos olhos com o seu olhar de louco e cantando sem alma e com raiva. Era o pior cantor do mundo. A parte mais assustadora era ele ser careca e pintar cabelo preto na cabeça. Pregava sustos enormes às pessoas, era assustador. Foi assim que me senti dentro das lederhosen. Há pessoas capazes de fazer qualquer coisa por duzentos dólares.
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