1971: No Início era o Cascais Jazz...Nasceu casualmente num almoço entre dois amigos, um do jazz (Luís Villas-Boas) e outro do fado (João Braga), contornou a oposição do regime político e tornou-se o evento de referência da grande música negra norte- -americana no país, apresentando nomes como Miles Davis, Ornette Coleman, Dexter Gordon, Thelonious Monk e Dizzy Gillespie. O mítico Cascais Jazz completa este ano 35 Invernos, tantos quantos são necessários para assinalar o primeiro grande festival de jazz em Portugal.
Pouco passava das 22h00 quando no dia 20 de Novembro de 1971 o septeto do lendário Miles Davis subia ao palco do Pavilhão do Dramático para dar início ao primeiro Cascais Jazz. Cerca de 12 mil pessoas, incluindo alguns notáveis, como Amália Rodrigues, Zeca Afonso, Alexandre O’Neil e Adriano Correia de Oliveira, assistiam nessa noite ao nascimento de um dos mais importantes eventos culturais realizados em Portugal, que até então só rivalizara em audiência com o Festival de Vilar de Mouros, realizado quatro meses antes. Quem estava desde logo bem ciente da importância do Cascais Jazz era Miles Davis, pelo que exigiu ser o primeiro músico a tocar, como recorda João Braga: «Ele disse-me uma coisa que nunca mais me esqueci: “este é o primeiro festival de jazz em Portugal e quero ser eu a abri-lo. Os outros só podem tocar a seguir a mim”». E entre os outros encontrava-se nada menos do que Ornette Coleman, que estava previsto tocar antes e não achou graça nenhuma às exigências do trompetista. Miles Davis estreava-se em Portugal e trazia na sua bagagem musical a sonoridade e o repertório de quatro discos: Bitches Brew, que criara a fusão entre o jazz e o rock, Black Beauty, Live at the Fillmore East e Live Evil. Quem esperava, pois, ouvir o Miles do tempo dos seus lendários quintetos dos anos 50 e 60 não podia deixar de estranhar este projecto de ruptura, claramente orientado para audiências mais jovens. Talvez por isso o mago do trompete já não usava fatos de alta-costura italiana, apresentando-se agora como uma estrela do rock. Diniz de Abreu descrevia assim no Diário Popular a sua nova indumentária: «Colete de pele preto, camisa da mesma cor, calça verde acetinada, muito justa, um lenço ao pescoço, caído em duas pontas; cinto dourado; botas prateadas; óculos escuros». Miles subiu ao palco juntamente com Keith Jarrett (piano eléctrico), Gary Bartz (saxofone), Michael Henderson (baixo eléctrico), Don Alias e James Foreman (percussão) e Leon Chandler (bateria). A suportar a sua música predominantemente eléctrica e funky, com o trompete de Miles ligado a um pedal de efeitos (wah-wah e volume), estava um sistema de som de duas toneladas. Um dos músicos mais notados deste septeto foi o pianista Keith Jarrett, conforme noticiava o Diário de Lisboa na crítica ao festival: «(..) Um solo deste último marcou profundamente toda a assistência, absolutamente conquistada». Porém nem todos se renderam à nova sonoridade de Miles. Duarte Mendonça era um deles, como recorda actualmente: «Deixou-me um pouco perplexo porque era uma música que eu nunca tinha ouvido. Eu vinha do melhor do Miles dos anos 50/60…». Também a peculiar atitude de Miles em palco não surpreendeu menos os jornalistas presentes. Na revista O Século Ilustrado, Maria Antónia Palla reportava: «Quando Miles pára e deixa tocar o seu conjunto, fica a um canto do palco, o corpo inclinado para a frente, as mãos fixadas nos joelhos, balançando-se como um felino selvagem pronto a saltar sobre a presa. O rosto cerrado, sem deixar transparecer a menor emoção, fixa o olhar num ponto indeterminado. (…) Numa hora passada de exibição, nem um sorriso. Como se o público não contasse, como se a multidão fosse um inimigo potencial». Já Fernando Cascais, então jornalista da revista Flama e que teve a rara sorte de ficar num canto do palco durante este concerto, escrevia: «Miles foi uma figura que impressionou a assistência. Dobrado sobre a trompete, as notas e os magníficos sons que dele saíam tinham o mistério e o timbre que tornam o seu possuidor inconfundível entre os trompetistas de jazz». João Braga era também um espectador atento ao que se passava em palco e um facto em especial chamou a sua atenção para Miles Davis: «A água que escorria das costas dele durante o concerto era algo inumano, certamente por causa das profaminas [ver caixa]. Quando ele no final do concerto chegou aos camarins nem conseguia articular uma frase».
MILES DAVIS Em noite de sons funky e eléctricos, o gigante do jazz impressionou a diva do fado. Amália Rodrigues encantou-se com Miles e Gary Bartz mas teve alguma dificuldade em compreender a sua música: "Não, totalmente não entendi. Eu sei que há qualquer coisa de vez em quando que acontece e que me toca, mas de resto não sei nada, não entendo nada de jazz. É para ver se entendo alguma coisa que eu vim ver". Ornette e o caso Haden Resignado a tocar depois de Miles Davis, Ornette Coleman não aceitou porém actuar no final da primeira noite do festival, como era intenção da organização, que entretanto já preparara o palco para os músicos portugueses, e exigiu ser o segundo, sob ameaça de abandonar o recinto passados cinco minutos... Resultado: uma hora de espera para o público, com várias pessoas a abandonarem a sala. Finalmente o pai do free-jazz subiu ao palco, acompanhado por Dewey Redman (saxofone tenor), Charlie Haden (contrabaixo) e Ed Blackwell (bateria), e foi, na opinião de Leonel Santos, «caótico, demolidor, free!», embora os seus sons «ruidosos» tivessem provocado nova debandada entre o público. Tito Lívio caracterizaria no jornal República a música de Coleman, considerando-a um «jazz sem regras, severo, anti-superficial, o destruir das linhas harmónicas, a arritmia». Mas além da música, este concerto faria história quando a dado momento Charlie Haden se curva para o microfone usado para amplificar o seu contrabaixo e dedica o tema «Song for Che» aos movimentos de libertação dos negros em Angola e Moçambique. «Quando o Charlie Haden leu a mensagem, as pessoas nas bancadas levantaram-se como uma mola e ergueram os punhos em saudação comunista», recorda João Braga. Entretanto, à frente de uma dessas bancadas, pendiam já dois panos com as inscrições «Guiné Livre» e «Abaixo Guerra Colonial», que uma fotografia inédita de Augusto Mayer permite agora revisitar pela primeira vez. No exterior do Pavilhão do Dramático estavam posicionadas duas camionetas com polícia-de-choque e pouco tempo depois o Comandante da PSP de Cascais ameaçava João Braga, ordenando o fim do espectáculo. «Ele disse-me: “Acabem já com isto ou faço entrar esta malta!”, ao que eu respondi: “Faça favor, o palco é todo seu, mas cuidadinho que as cadeiras não estão fixas ao chão…». O espectáculo prosseguiu. A imprensa «oficial» ignorou por completo o incidente (a censura não perdoava…), à excepção do Diário de Lisboa onde, nas entrelinhas de um artigo de José Jorge Letria (que entrevistara Haden já nas vésperas da sua actuação e o questionara sobre a possibilidade de o jazz poder ser uma forma de actuação política…), se podia perceber que algo mais do que jazz se passara no Dramático: «Quem é que não sentiu um nó na garganta com a violência (negra) do quarteto de Ornette Coleman? Quem é que não estremeceu ao ver o punho cerrado de Dewey Redman (…) bem erguido no ar, no final da sua actuação? E éramos todos os acusados»… Este evento não deixou porém de ser noticiado nos órgãos clandestinos, como a Rádio Portugal Livre (emitida em Onda Média a partir da Argélia) e o jornal Portugal Democrático, que informava que «no Festival de Jazz de Cascais um dos músicos americanos dedicou um número aos Movimentos de Libertação de Angola e Moçambique. Apesar de falar em inglês, as suas palavras foram traduzidas pelas pessoas que entenderam e a sala quase veio abaixo com os aplausos. No final do espectáculo, ao regressar ao seu camarim, era ali aguardado por agentes da PIDE que o intimaram a deixar imediatamente o País. Foi forçado a seguir de Cascais para o aeroporto e embarcar no mesmo dia».
A CATEDRAL De 1971 a 1980 o Pavilhão do Dramático foi uma verdadeira casa para os maiores jazzmen e bluesmen. Integrados no Cascais Jazz, por ali passaram, entre muitos outros, Jimmy Smith, Cannonball Adderley, Dave Brubeck, B.B. King, Duke Ellington, Sarah Vaughan, McCoy Tyner, Charles Mingus, Sonny Rollins, Gil Evans, Muddy Waters, Art Blakey & The Jazz Messengers, Betty Carter, Freddie Hubbard e Buddy Guy. Na verdade, Charlie Haden foi levado, sim, mas para a sede da PIDE/DGS (Direcção-Geral de Segurança), na Rua António Maria Cardoso. No auto de declarações, o músico é referido como membro do quarteto de Hornet Coleman (sic) e a argumentação do interrogatório não podia ser mais cínica, tendo o músico sido «convidado a declarar se foi bem recebido em Portugal e aqui achou ambiente favorável à sua visita», ao que Haden respondeu afirmativamente, e se «uma vez que foi bem recebido no nosso País, qual o motivo porque já durante a viagem no avião abordou assuntos referentes aos movimentos africanos desfavoráveis a Portugal e durante a sua actuação em Cascais dedicou uma canção escrita por ele próprio intitulada “canção para o CHE”, aos movimentos africanos de independência (…)». De acordo com o auto de declarações, Haden mostrou-se «arrependido pelo acto que praticou por desconhecer que afectava o país onde o fazia». Mas enquanto estava na sede da DGS, Haden tinha algo na algibeira… como Paulo Gil recorda agora: «Disse-me o Charlie Haden que a gravação do tema “Song For Che”, realizada em Cascais naquela noite, se encontrava na algibeira da gabardina que vestiu quando foi detido pela PIDE. Como, na Rua António Maria Cardoso, a gabardina foi pendurada num cabide existente no gabinete em que foi interrogado, e só depois disso é que o revistaram, a PIDE nunca confiscou a gravação...». E foi assim que em 1976 Charlie Haden pôde incluir parte desta gravação no disco Closeness (no tema «For a Free Portugal»), que Paulo Gil e Rui Neves importaram para Portugal quando o primeiro era director-geral do Departamento de Discos da Valentim de Carvalho. Entretanto, chegavam também à sede da DGS Luís Villas-Boas e João Braga, que a PIDE fora buscar de madrugada, tentando este último servir de moderador entre os agentes e Haden: «O Inspector Glória dizia-me “o gajo tem de levar uns tabefes” e eu disse que eles é que sabiam, mas que sabia como eram os tabefes da PIDE e que quando ele chegasse a Londres teria as marcas para mostrar à imprensa... Ele perguntou-me se eu achava então que ele devia ser condecorado e eu disse que não, que achava que eles deviam ir entregá-lo a casa do Adido Cultural dos EUA em Portugal sob pretexto de ele não ser digno dos calabouços da PIDE…». No dia 21, domingo, Haden foi assim levado sob escolta a casa do Adido Cultural da Embaixada do EUA e daí seguiu para o Aeroporto de Lisboa, de onde partiu para Londres. Quanto a Villas-Boas e João Braga, viam-se agora confrontados com a decisão da DGS cancelar o segundo dia do festival, intimando-os a devolver o dinheiro dos bilhetes já vendidos, solução logo rejeitada por ambos. Ao fim de várias horas de argumentação, os agentes da DGS exigiram finalmente 500 livre-trânsitos para autorizar a prossecução do festival e às 13h00 desse dia Villas-Boas e Braga abandonavam as instalações para ir assistir ao jogo de futebol Portugal-Bélgica, acompanhando Dizzy Gillespie, que exigira ver Eusébio jogar. Mas regressemos ainda ao Pavilhão do Dramático, já que depois de Ornette Coleman ainda actuaram o quarteto The Bridge e Dexter Gordon. O primeiro pouco mais foi do que uma ponte para a actuação de Dexter Gordon, prejudicado por uma aparelhagem sonora que mal deixava ouvir o saxofone de João Ramos Jorge (Rão Kyao) que improvisava sobre a harmonia e o ritmo de Kevin Hoidale (piano), Jean Sarbib (contrabaixo) e Adrien Ransy (bateria). Com a acumulação de atrasos, Dexter Gordon acabou por subir ao palco eram já três horas da madrugada… actuando perante um sala bem menos cheia. Acompanhado por Marcos Resende (piano), Jean Sarbib (contrabaixo) e Manuel Jorge Veloso (bateria), fez soar a sua música até por volta das cinco horas… Desta experiência recorda-se bem Manuel Jorge Veloso, que já em 1967 havia tocado com Dexter Gordon numa jam-session em Coimbra: «É impossível dar uma pálida ideia do que significou para mim ter pisado o palco com um músico da grandeza do Dexter Gordon, até por se tratar de um primeiro grande festival português que (já então se percebia) iria fazer história. Mas talvez ainda mais importante do que esse momento, em concreto, foi poder conviver diariamente com ele (nos poucos dias que tivemos, para ensaiar, conhecer os segredos da música, acertar agulhas e tocar algumas noites no Hot Clube Portugal), confirmar a sua qualidade musical e descobrir as suas qualidades humanas, como músico e homem sensível, nada arrogante, paciente e incentivador, fazendo com que esta aventura – nessa época, era de facto uma aventura! – fosse afinal, para nós, uma coisa natural. Inesquecíveis, ainda, os ensinamentos e a confiança que ele nos transmitia, as histórias que contava, os seus gestos lentos, a forma como mexia o corpo, apresentava o saxofone aos que o ouviam e dizia os títulos das peças que tocava, para já não falar das sonoras gargalhadas que jamais voltei a ouvir…»Em 1971 Miles Davis era já uma estrela (um ano antes tinha actuado no célebre Festival da Ilha de Wight, perante 350 mil espectadores) e as suas várias e excêntricas exigências, entre as quais um Rolls-Royce para se deslocar, mais próprias de uma vedeta do rock do que do jazz, e comportamento valeram à organização um aturado esforço e muitas dores de cabeça, como recorda João Braga. Exigiu um chauffeur branco – fardado a rigor, com boné, luvas brancas e dragonas – e quando chegou ao aeroporto perguntou-me se não podia ter arranjado um mais branco… No caminho passámos por vários estaleiros de obras onde havia operários negros e ele, que já tinha vindo a chatear-me com piadinhas racistas, perguntou se ainda continuávamos a importar escravos de Cabo Verde. Eu disse-lhe «os que nós agora importamos de lá passam por cá e depois vão para NYC e tornam-se músicos de jazz», numa ironia com a carreira de Horace Silver. Ele encrispou-se e depois desatou-se a rir. Quando contei isto ao Villas ele disse-me que eu tinha sorte porque o Miles era boxeur e costumava dar socos às pessoas… Exigiu um tipo para «sparring-partner», para levar porrada, e eu arranjei um tipo do Bairro Alto para praticar boxe com ele. Mas ele voltou-se ao Miles e tive de ir à Mouraria arranjar um tipo mais velho para levar porrada. Por outro lado, devo ter ficado com uma fama danada na classe médica da época: (1) Mobilizei um médico para ir ao Hotel Palácio observar o cabeleireiro do Miles, que estava com um problema de ordem venérea no traseiro; (2) Chateei todos os clínicos que conhecia para que me arranjassem as embalagens que pudessem de Profamina. Todos os que responderam ao meu pedido me avisaram, «vê lá o que andas a fazer, que isto, tomado em excesso, pode ser muito perigoso», apesar de eu clamar que aquilo era para o Miles Davis – no que eles, obviamente, não acreditaram… O genial autor de Kind of Blue saiu do armário (literalmente) da suite onde se encontrava, em meditação, e engoliu sem se deter as três caixas que reuni, não sem me sussurrar, na sua voz rouca, mas doce, que lhe fizesse companhia. Lembrei-me dos avisos dos médicos e recusei, polidamente. Às exigências de Miles somem-se ainda uma suite em hotel de luxo, nove quartos simples em hotel de primeira classe, cinco automóveis e uma camioneta para transporte de equipamento, o qual, por excesso de peso, obrigou os organizadores a desembolsar 30 contos no aeroporto de Lisboa…
Pouco passava das 22h00 quando no dia 20 de Novembro de 1971 o septeto do lendário Miles Davis subia ao palco do Pavilhão do Dramático para dar início ao primeiro Cascais Jazz. Cerca de 12 mil pessoas, incluindo alguns notáveis, como Amália Rodrigues, Zeca Afonso, Alexandre O’Neil e Adriano Correia de Oliveira, assistiam nessa noite ao nascimento de um dos mais importantes eventos culturais realizados em Portugal, que até então só rivalizara em audiência com o Festival de Vilar de Mouros, realizado quatro meses antes. Quem estava desde logo bem ciente da importância do Cascais Jazz era Miles Davis, pelo que exigiu ser o primeiro músico a tocar, como recorda João Braga: «Ele disse-me uma coisa que nunca mais me esqueci: “este é o primeiro festival de jazz em Portugal e quero ser eu a abri-lo. Os outros só podem tocar a seguir a mim”». E entre os outros encontrava-se nada menos do que Ornette Coleman, que estava previsto tocar antes e não achou graça nenhuma às exigências do trompetista. Miles Davis estreava-se em Portugal e trazia na sua bagagem musical a sonoridade e o repertório de quatro discos: Bitches Brew, que criara a fusão entre o jazz e o rock, Black Beauty, Live at the Fillmore East e Live Evil. Quem esperava, pois, ouvir o Miles do tempo dos seus lendários quintetos dos anos 50 e 60 não podia deixar de estranhar este projecto de ruptura, claramente orientado para audiências mais jovens. Talvez por isso o mago do trompete já não usava fatos de alta-costura italiana, apresentando-se agora como uma estrela do rock. Diniz de Abreu descrevia assim no Diário Popular a sua nova indumentária: «Colete de pele preto, camisa da mesma cor, calça verde acetinada, muito justa, um lenço ao pescoço, caído em duas pontas; cinto dourado; botas prateadas; óculos escuros». Miles subiu ao palco juntamente com Keith Jarrett (piano eléctrico), Gary Bartz (saxofone), Michael Henderson (baixo eléctrico), Don Alias e James Foreman (percussão) e Leon Chandler (bateria). A suportar a sua música predominantemente eléctrica e funky, com o trompete de Miles ligado a um pedal de efeitos (wah-wah e volume), estava um sistema de som de duas toneladas. Um dos músicos mais notados deste septeto foi o pianista Keith Jarrett, conforme noticiava o Diário de Lisboa na crítica ao festival: «(..) Um solo deste último marcou profundamente toda a assistência, absolutamente conquistada». Porém nem todos se renderam à nova sonoridade de Miles. Duarte Mendonça era um deles, como recorda actualmente: «Deixou-me um pouco perplexo porque era uma música que eu nunca tinha ouvido. Eu vinha do melhor do Miles dos anos 50/60…». Também a peculiar atitude de Miles em palco não surpreendeu menos os jornalistas presentes. Na revista O Século Ilustrado, Maria Antónia Palla reportava: «Quando Miles pára e deixa tocar o seu conjunto, fica a um canto do palco, o corpo inclinado para a frente, as mãos fixadas nos joelhos, balançando-se como um felino selvagem pronto a saltar sobre a presa. O rosto cerrado, sem deixar transparecer a menor emoção, fixa o olhar num ponto indeterminado. (…) Numa hora passada de exibição, nem um sorriso. Como se o público não contasse, como se a multidão fosse um inimigo potencial». Já Fernando Cascais, então jornalista da revista Flama e que teve a rara sorte de ficar num canto do palco durante este concerto, escrevia: «Miles foi uma figura que impressionou a assistência. Dobrado sobre a trompete, as notas e os magníficos sons que dele saíam tinham o mistério e o timbre que tornam o seu possuidor inconfundível entre os trompetistas de jazz». João Braga era também um espectador atento ao que se passava em palco e um facto em especial chamou a sua atenção para Miles Davis: «A água que escorria das costas dele durante o concerto era algo inumano, certamente por causa das profaminas [ver caixa]. Quando ele no final do concerto chegou aos camarins nem conseguia articular uma frase».
MILES DAVIS Em noite de sons funky e eléctricos, o gigante do jazz impressionou a diva do fado. Amália Rodrigues encantou-se com Miles e Gary Bartz mas teve alguma dificuldade em compreender a sua música: "Não, totalmente não entendi. Eu sei que há qualquer coisa de vez em quando que acontece e que me toca, mas de resto não sei nada, não entendo nada de jazz. É para ver se entendo alguma coisa que eu vim ver". Ornette e o caso Haden Resignado a tocar depois de Miles Davis, Ornette Coleman não aceitou porém actuar no final da primeira noite do festival, como era intenção da organização, que entretanto já preparara o palco para os músicos portugueses, e exigiu ser o segundo, sob ameaça de abandonar o recinto passados cinco minutos... Resultado: uma hora de espera para o público, com várias pessoas a abandonarem a sala. Finalmente o pai do free-jazz subiu ao palco, acompanhado por Dewey Redman (saxofone tenor), Charlie Haden (contrabaixo) e Ed Blackwell (bateria), e foi, na opinião de Leonel Santos, «caótico, demolidor, free!», embora os seus sons «ruidosos» tivessem provocado nova debandada entre o público. Tito Lívio caracterizaria no jornal República a música de Coleman, considerando-a um «jazz sem regras, severo, anti-superficial, o destruir das linhas harmónicas, a arritmia». Mas além da música, este concerto faria história quando a dado momento Charlie Haden se curva para o microfone usado para amplificar o seu contrabaixo e dedica o tema «Song for Che» aos movimentos de libertação dos negros em Angola e Moçambique. «Quando o Charlie Haden leu a mensagem, as pessoas nas bancadas levantaram-se como uma mola e ergueram os punhos em saudação comunista», recorda João Braga. Entretanto, à frente de uma dessas bancadas, pendiam já dois panos com as inscrições «Guiné Livre» e «Abaixo Guerra Colonial», que uma fotografia inédita de Augusto Mayer permite agora revisitar pela primeira vez. No exterior do Pavilhão do Dramático estavam posicionadas duas camionetas com polícia-de-choque e pouco tempo depois o Comandante da PSP de Cascais ameaçava João Braga, ordenando o fim do espectáculo. «Ele disse-me: “Acabem já com isto ou faço entrar esta malta!”, ao que eu respondi: “Faça favor, o palco é todo seu, mas cuidadinho que as cadeiras não estão fixas ao chão…». O espectáculo prosseguiu. A imprensa «oficial» ignorou por completo o incidente (a censura não perdoava…), à excepção do Diário de Lisboa onde, nas entrelinhas de um artigo de José Jorge Letria (que entrevistara Haden já nas vésperas da sua actuação e o questionara sobre a possibilidade de o jazz poder ser uma forma de actuação política…), se podia perceber que algo mais do que jazz se passara no Dramático: «Quem é que não sentiu um nó na garganta com a violência (negra) do quarteto de Ornette Coleman? Quem é que não estremeceu ao ver o punho cerrado de Dewey Redman (…) bem erguido no ar, no final da sua actuação? E éramos todos os acusados»… Este evento não deixou porém de ser noticiado nos órgãos clandestinos, como a Rádio Portugal Livre (emitida em Onda Média a partir da Argélia) e o jornal Portugal Democrático, que informava que «no Festival de Jazz de Cascais um dos músicos americanos dedicou um número aos Movimentos de Libertação de Angola e Moçambique. Apesar de falar em inglês, as suas palavras foram traduzidas pelas pessoas que entenderam e a sala quase veio abaixo com os aplausos. No final do espectáculo, ao regressar ao seu camarim, era ali aguardado por agentes da PIDE que o intimaram a deixar imediatamente o País. Foi forçado a seguir de Cascais para o aeroporto e embarcar no mesmo dia».
A CATEDRAL De 1971 a 1980 o Pavilhão do Dramático foi uma verdadeira casa para os maiores jazzmen e bluesmen. Integrados no Cascais Jazz, por ali passaram, entre muitos outros, Jimmy Smith, Cannonball Adderley, Dave Brubeck, B.B. King, Duke Ellington, Sarah Vaughan, McCoy Tyner, Charles Mingus, Sonny Rollins, Gil Evans, Muddy Waters, Art Blakey & The Jazz Messengers, Betty Carter, Freddie Hubbard e Buddy Guy. Na verdade, Charlie Haden foi levado, sim, mas para a sede da PIDE/DGS (Direcção-Geral de Segurança), na Rua António Maria Cardoso. No auto de declarações, o músico é referido como membro do quarteto de Hornet Coleman (sic) e a argumentação do interrogatório não podia ser mais cínica, tendo o músico sido «convidado a declarar se foi bem recebido em Portugal e aqui achou ambiente favorável à sua visita», ao que Haden respondeu afirmativamente, e se «uma vez que foi bem recebido no nosso País, qual o motivo porque já durante a viagem no avião abordou assuntos referentes aos movimentos africanos desfavoráveis a Portugal e durante a sua actuação em Cascais dedicou uma canção escrita por ele próprio intitulada “canção para o CHE”, aos movimentos africanos de independência (…)». De acordo com o auto de declarações, Haden mostrou-se «arrependido pelo acto que praticou por desconhecer que afectava o país onde o fazia». Mas enquanto estava na sede da DGS, Haden tinha algo na algibeira… como Paulo Gil recorda agora: «Disse-me o Charlie Haden que a gravação do tema “Song For Che”, realizada em Cascais naquela noite, se encontrava na algibeira da gabardina que vestiu quando foi detido pela PIDE. Como, na Rua António Maria Cardoso, a gabardina foi pendurada num cabide existente no gabinete em que foi interrogado, e só depois disso é que o revistaram, a PIDE nunca confiscou a gravação...». E foi assim que em 1976 Charlie Haden pôde incluir parte desta gravação no disco Closeness (no tema «For a Free Portugal»), que Paulo Gil e Rui Neves importaram para Portugal quando o primeiro era director-geral do Departamento de Discos da Valentim de Carvalho. Entretanto, chegavam também à sede da DGS Luís Villas-Boas e João Braga, que a PIDE fora buscar de madrugada, tentando este último servir de moderador entre os agentes e Haden: «O Inspector Glória dizia-me “o gajo tem de levar uns tabefes” e eu disse que eles é que sabiam, mas que sabia como eram os tabefes da PIDE e que quando ele chegasse a Londres teria as marcas para mostrar à imprensa... Ele perguntou-me se eu achava então que ele devia ser condecorado e eu disse que não, que achava que eles deviam ir entregá-lo a casa do Adido Cultural dos EUA em Portugal sob pretexto de ele não ser digno dos calabouços da PIDE…». No dia 21, domingo, Haden foi assim levado sob escolta a casa do Adido Cultural da Embaixada do EUA e daí seguiu para o Aeroporto de Lisboa, de onde partiu para Londres. Quanto a Villas-Boas e João Braga, viam-se agora confrontados com a decisão da DGS cancelar o segundo dia do festival, intimando-os a devolver o dinheiro dos bilhetes já vendidos, solução logo rejeitada por ambos. Ao fim de várias horas de argumentação, os agentes da DGS exigiram finalmente 500 livre-trânsitos para autorizar a prossecução do festival e às 13h00 desse dia Villas-Boas e Braga abandonavam as instalações para ir assistir ao jogo de futebol Portugal-Bélgica, acompanhando Dizzy Gillespie, que exigira ver Eusébio jogar. Mas regressemos ainda ao Pavilhão do Dramático, já que depois de Ornette Coleman ainda actuaram o quarteto The Bridge e Dexter Gordon. O primeiro pouco mais foi do que uma ponte para a actuação de Dexter Gordon, prejudicado por uma aparelhagem sonora que mal deixava ouvir o saxofone de João Ramos Jorge (Rão Kyao) que improvisava sobre a harmonia e o ritmo de Kevin Hoidale (piano), Jean Sarbib (contrabaixo) e Adrien Ransy (bateria). Com a acumulação de atrasos, Dexter Gordon acabou por subir ao palco eram já três horas da madrugada… actuando perante um sala bem menos cheia. Acompanhado por Marcos Resende (piano), Jean Sarbib (contrabaixo) e Manuel Jorge Veloso (bateria), fez soar a sua música até por volta das cinco horas… Desta experiência recorda-se bem Manuel Jorge Veloso, que já em 1967 havia tocado com Dexter Gordon numa jam-session em Coimbra: «É impossível dar uma pálida ideia do que significou para mim ter pisado o palco com um músico da grandeza do Dexter Gordon, até por se tratar de um primeiro grande festival português que (já então se percebia) iria fazer história. Mas talvez ainda mais importante do que esse momento, em concreto, foi poder conviver diariamente com ele (nos poucos dias que tivemos, para ensaiar, conhecer os segredos da música, acertar agulhas e tocar algumas noites no Hot Clube Portugal), confirmar a sua qualidade musical e descobrir as suas qualidades humanas, como músico e homem sensível, nada arrogante, paciente e incentivador, fazendo com que esta aventura – nessa época, era de facto uma aventura! – fosse afinal, para nós, uma coisa natural. Inesquecíveis, ainda, os ensinamentos e a confiança que ele nos transmitia, as histórias que contava, os seus gestos lentos, a forma como mexia o corpo, apresentava o saxofone aos que o ouviam e dizia os títulos das peças que tocava, para já não falar das sonoras gargalhadas que jamais voltei a ouvir…»Em 1971 Miles Davis era já uma estrela (um ano antes tinha actuado no célebre Festival da Ilha de Wight, perante 350 mil espectadores) e as suas várias e excêntricas exigências, entre as quais um Rolls-Royce para se deslocar, mais próprias de uma vedeta do rock do que do jazz, e comportamento valeram à organização um aturado esforço e muitas dores de cabeça, como recorda João Braga. Exigiu um chauffeur branco – fardado a rigor, com boné, luvas brancas e dragonas – e quando chegou ao aeroporto perguntou-me se não podia ter arranjado um mais branco… No caminho passámos por vários estaleiros de obras onde havia operários negros e ele, que já tinha vindo a chatear-me com piadinhas racistas, perguntou se ainda continuávamos a importar escravos de Cabo Verde. Eu disse-lhe «os que nós agora importamos de lá passam por cá e depois vão para NYC e tornam-se músicos de jazz», numa ironia com a carreira de Horace Silver. Ele encrispou-se e depois desatou-se a rir. Quando contei isto ao Villas ele disse-me que eu tinha sorte porque o Miles era boxeur e costumava dar socos às pessoas… Exigiu um tipo para «sparring-partner», para levar porrada, e eu arranjei um tipo do Bairro Alto para praticar boxe com ele. Mas ele voltou-se ao Miles e tive de ir à Mouraria arranjar um tipo mais velho para levar porrada. Por outro lado, devo ter ficado com uma fama danada na classe médica da época: (1) Mobilizei um médico para ir ao Hotel Palácio observar o cabeleireiro do Miles, que estava com um problema de ordem venérea no traseiro; (2) Chateei todos os clínicos que conhecia para que me arranjassem as embalagens que pudessem de Profamina. Todos os que responderam ao meu pedido me avisaram, «vê lá o que andas a fazer, que isto, tomado em excesso, pode ser muito perigoso», apesar de eu clamar que aquilo era para o Miles Davis – no que eles, obviamente, não acreditaram… O genial autor de Kind of Blue saiu do armário (literalmente) da suite onde se encontrava, em meditação, e engoliu sem se deter as três caixas que reuni, não sem me sussurrar, na sua voz rouca, mas doce, que lhe fizesse companhia. Lembrei-me dos avisos dos médicos e recusei, polidamente. Às exigências de Miles somem-se ainda uma suite em hotel de luxo, nove quartos simples em hotel de primeira classe, cinco automóveis e uma camioneta para transporte de equipamento, o qual, por excesso de peso, obrigou os organizadores a desembolsar 30 contos no aeroporto de Lisboa…
Texto no Blitz 05,Novembro.
2 comentários:
Seria de bom tom referir o nome do autor.
Já agora, refiro que o autor do texto é também o autor do blog Jazz No País do Improviso
http://jnpdi.blogspot.com/
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